Hegemonia global e uso da força

(Major-General Carlos Branco, in Jornal Económico, 13/04/2023)

Um estudo conclui que Washington tem preferido, desde o fim da Guerra Fria, empregar diretamente a força militar em vez de ameaças ou demonstrações de força, aumentando assim os níveis de hostilidade.


A reflexão sobre os métodos utilizados pelas grandes potências para fazerem prevalecer a sua vontade na arena internacional é um tema inesgotável.

Robert Kennedy Jr., sobrinho do ex-presidente John Kennedy e putativo candidato à corrida presidencial de 2024, comentava há uns dias numa rede social que “o colapso da influência norte-americana sobre a Arábia Saudita e a nova aliança de Riade com Pequim e Teerão são símbolos dolorosos do abjeto falhanço da estratégia neocon para manter a hegemonia global dos EUA através de projeções agressivas de poder militar,” o que, na prática, não se distingue da dos liberais intervencionistas, presentemente no poder em Washington.

A estratégica hegemónica norte-americana, recorrendo a estas práticas de sucesso e méritos questionáveis, foi corroborada pelo trabalho de dois investigadores norte-americanos, no qual é feito o levantamento das intervenções militares norte-americanas desde a independência dos EUA, em 1776, até 2019.

Conclui o estudo que os EUA se envolveram em quase 400 intervenções militares desde 1776, metade delas entre 1950 e 2019. Essas intervenções aumentaram de intensidade nos últimos anos, tendo os EUA intervindo militarmente mais de 200 vezes após a Segunda Guerra Mundial. Mais de 25% delas ocorreram no pós-Guerra Fria. “Em vez de disseminarem a democracia, essas intervenções transformaram, na melhor das hipóteses, os estados-alvo em democracias iliberais”, refere o estudo.

Como parte integrante dessa ação hegemónica, os EUA também interferiram frequentemente na política interna de outros Estados através da intromissão em eleições. Contudo, conforme conclui o mencionado estudo, Washington tem preferido, desde o fim da Guerra Fria, empregar diretamente a força militar em vez de ameaças ou demonstrações de força, aumentando assim os níveis de hostilidade.

Essas intervenções incluíram também as operações de mudança de regime levadas a cabo por quase todo o mundo. Como exposto no “vetusto” relatório “Bruce-Lovett” (1956), os golpes de estado patrocinados por Washington na Jordânia, Síria, Irão, Iraque e Egito foram apelidados de antiéticos e opostos aos valores americanos, e responsáveis por comprometerem a liderança internacional da América, a sua autoridade moral, e ainda pelo antiamericanismo desenvolvido nessas áreas do globo.

Como escreveu Kennedy Jr., os EUA são odiados no Médio Oriente “não pelas suas liberdades, mas pela forma como os próprios EUA traíram essas liberdades – os nossos ideais – nos seus territórios […], como comprometemos os nossos valores, matando milhares de pessoas inocentes, e subvertemos o nosso idealismo em aventuras infrutíferas e onerosas […] que não fizeram nada para promover a democracia ou ganhar amigos e influência.” Madeleine Albright defendeu que a morte de meio milhão de crianças na guerra do Iraque foi “um preço que valeu a pena.”

A China optou por uma estratégia hegemónica diferente. Ainda segundo Kennedy Jr., “a China destronou o império americano através da hábil projeção de poder económico. Na última década, o nosso país [EUA] gastou triliões de dólares bombardeando estradas, pontes, portos e aeroportos. A China gastou o equivalente construindo o mesmo no mundo em desenvolvimento.” Para ele, “a guerra na Ucrânia, que empurrou a China e a Rússia para uma aliança invencível, e que custou 8,1 triliões de dólares no Iraque e na Ucrânia, a chacota do poderio militar e da autoridade moral americana, representa o colapso do sonho neocon do “Século Americano”.


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7 pensamentos sobre “Hegemonia global e uso da força

  1. É análise coerente e em boa parte fundada em factos incontestáveis, mas faltam duas considerações:
    – a acção do imperialismo soviético agora regressado à sua legítima base de imperialismo russo
    – o saber-se o que seja a China, se com poder bastante para poder ambicionar reproduzir os valores que formam o seu modelo interno.

  2. Quando eu era mais jovem e ingênuo, sonhava com América, especialmente o lado da liberdade mais do que o lado capitalista.O dinheiro é rei, não tens dinheiro, não podes fazer nada lá. As coisas essenciais custam uma fortuna, a educação, a saúde, a segurança e precisamente a segurança é uma treta neste país onde as armas são legais. Por último, mas não menos importante, seu lado processual, você pode levar a julgamento tudo e qualquer coisa.

    O mundo não é maniqueísta, podemos muito bem criticar os EUA sem ser pró-Rússo ou China que também são criticáveis (guerra na Ucrânia, problemas no Tibete, entre os uigures…).
    Em suma, o que incomoda é o duplo critério, mas quando é factual e bem trazido como aqui, não podemos deixar de subscrever as estas palavras.

    Mas, basta recuar na cronologia dos factos históricos.
    Com efeito, os EUA são compostos em grande parte por imigrantes de todos os países (não os melhores para alguns, já que quiseram fugir do sistema judiciário do seu país…e por causa… ) que não deixaram de querer territórios que não lhes pertenciam, Mais para os nativos americanos.

    Durante a conquista do oeste, alguns territórios foram dados às famílias imigrantes para cultivá-los, independentemente das pessoas que viviam lá antes. Eles responderam às flechas com balas. O que expulsou os nativos americanos de seu território ancestral.
    Assim, pode-se dizer que a guerra faz parte de sua cultura, e do modo de agir com os outros não passa de desprezo.
    Então, não, este é um país que não me faz sonhar, porque destruir os outros para governar não é nem mais nem menos que predação.

    O problema dos EUA é que eles foram incapazes de entender o que é uma aristocracia ou plutocracia e proteger-se dela, originalmente eles não tinham muito e os primeiros habitantes eram um pouco especiais. Mais tarde, eles eram muito alfabetizados, mas, por outro lado, eles não tinham uma aristocracia positiva, eles se tornaram ricos , mas sem ter estruturas estáveis para lidar adequadamente com esse aumento de poder, Por exemplo, qualquer pessoa compreende que não se pode estabelecer um sistema de caução que beneficia largamente os mais ricos, no plano penal, eles fizeram-no. Não parece grande coisa, mas é uma semente de catástrofe que causará grandes danos na sua história.

    Então, se eles são quase co-desenvolvedores do nazismo e seu protetor final, é também que eles têm conceitos baseados em como os alemães na noção de superioridade dos povos sobre os outros, há sempre um fundo racial onipresente nos EUA. Sua relação com a igualdade, só existe como raça, há partituras fortes, mas o que os brancos fazem, os negros também fazem. Se eles falam inglês em vez de alemão, é por uma via, por uma votação.

    Esta é a sua cultura e é difícil de penetrar por causa do nosso universalismo Português ou religião ou tipo de pessoas, ninguém se importa. O que é estranho é que eles concordam em ver as pessoas morrerem, as suas em nome da liberdade empresarial. Um pouco como os burgueses, alemães que aceitam torturar a sua população, para obter lucros e aumentar os seus rendimentos.

    Em resumo, os pobres americanos são odiados porque não sabem enquadrar as suas elites, um pouco como nós, mas é pior numa cultura como a deles.

    Os Ocidentais de hoje ainda estão convencidos de que o progresso, ou o que eles chamam assim, pode e deve ser contínuo e indefinido; iludem-se mais do que nunca por conta própria, eles mesmos se deram a missão de fazer penetrar esse progresso em todos os lugares, impondo-o, se necessário, pela força, aos povos que têm o mal, imperdoável aos seus olhos, de não o aceitar com pressa. Esta fúria de propaganda, a que já aludimos, é muito perigosa para todos, mas sobretudo para os próprios Ocidentais, que faz temer e odiar; o espírito de conquista nunca foi levado tão longe, E, sobretudo, nunca se tinha disfarçado sob aqueles exteriores hipócritas que são próprios do «moralismo» moderno. O Ocidente esquece, aliás, que não tinha existência histórica numa época em que as civilizações orientais já tinham atingido o seu pleno desenvolvimento…

    Honestamente, nunca fui aos Estados Unidos e não posso dizer se gostaria ou não, mas sei que muitos americanos fogem de seu país para viver na Europa, em Portugal, entre outros, fogem da violência armada, Principalmente os tiroteios nos colégios dos supermercados. etc!

    Os EUA, primeira potência económica e financeira mundial desde o fim da Primeira Guerra Mundial, é evidente que estão a perder velocidade. No entanto, a história ensina-nos prudência. Durante os Tempos Modernos, Roma, superpotência da segunda metade da Idade Média, levou séculos para morrer. Os Estados Unidos farão o mesmo, quando o ritmo dos negócios se acelerou muito nos últimos 250 anos.

    Penso que nenhum país abandona o dólar por prazer. Todos teriam preferido continuar com ele durante muito tempo. Foi o abuso que tornou a situação insustentável para muitos países, especialmente entre os emergentes.

    Podemos citar
    – a crise dos subprimes de 2008
    – a lei de extraterritorialidade ( Patriot Act ) que o coloca potencialmente sob sanções dos EUA sempre que utiliza o dólar
    – os embargos, as sanções económicas para atingir os países na mira do Ocidente.
    – a confiscação dos bens russos ( moral ou não, mostrou o risco de confiscação pura e simples, com um simples estalar de dedos )
    – a impressão LOUCA de moeda, num ponto jamais atingido na história (quantitativo easing, etc.)
    – aumento arbitrário do limite máximo da dívida (não há limite)
    – a vigilância de todas as transacções em dólares pela CIA
    – o abandono do padrão ouro por Nixon
    – o abandono futuro do padrão petróleo, uma vez que tenderá a desaparecer
    (Eu certamente esqueço outras razões)

    Todas estas razões alargaram a lista dos países com deficiência com o dólar. Quanto maior a lista desses países, mais eles querem escapar.

    Talvez se o Ocidente não tivesse puxado tanto a corda, teríamos podido evitar este desejo irreprimível, partilhado por cada vez mais países, de deixar o dólar.

    Penso que a China não tem qualquer interesse em ser a moeda de reserva e a China também não o deseja.O objectivo último da China é construir um sistema paralelo que utilize as moedas de cada país.Os EUA continuarão a ser a moeda de reserva do Ocidente e não do sistema dos Brics. a inflação chegará finalmente ao Ocidente.

    A China garante a convertibilidade de sua moeda em ouro, o que os EUA não podem (mais) fazer há muito tempo. Emprestar dinheiro para manter os países em cativeiro, os EUA sempre fizeram isso.O Plano Marshall, por exemplo… Por mais anos (talvez mais) O mundo inteiro, cativo terá dólar em seu “bolso” como moeda de reserva e troca.

    A questão é: os Estados Unidos vão deixar a sua moeda declinar sem reagir? Na minha modesta opinião, estão a reagir, ajudando maciçamente o regime de Kiev a enfraquecer a Rússia ( que não se enfraquecerá sob o reinado de Putin , é uma certeza ) e reage também provocando a China sobre Taiwan , Temos aqui um cenário perigoso, que penso assinará o fim da fraude americana sobre o dólar , moeda que lhes permitiu endividar-se gratuitamente e tornar-se uma potência desestabilizadora no mundo .

  3. Parece-me que o que está verdadeiramente em causa é saber se os Estados Unidos vão continuar a ser os donos do mundo, recorrendo a diversas formas de violência, para porem e disporem dos destinos de outras nações, ou se vão perder a sua posição hegemónica. Neste contexto, a Ucrânia e Taiwan são simples peças, meros peões, neste jogo de xadrez. A ideia é enfraquecer primeiro a Rússia e se possível pilhar as suas riquezas, para de seguida pôr a China em sentido e bem direitinha.
    Neste momento tudo leva a crer que já perderam e que o mundo unipolar está por um fio e isso é bom pois é um mundo que apresenta uma fachada de democracia interna, mas é escandalosamente antidemocrático para o exterior, que tenta dominar e oprimir em nome de uma superioridade ética que efetivamente não possui, argumento a que todavia recorre para justificar as malfeitorias que pratica, ontem como hoje em nome da difusão da civilização, da paz e, como não podia deixar de ser, da democracia. Podemos com propriedade dizer que pelos frutos que resultam das suas intervenções se conhece a árvore que os produz.

  4. Os Estados Unidos como donos do mundo é uma daquelas cretinices que dá não sei que justificativo para que tantas pessoas em tantos países se sintam justificadas por não fazerem o que lhes compete como como cidadãos!
    Vitimados por vocação é o que me parece.

    • O que lhes compete como cidadãos é serem cãezinhos que se deixam espezinhar pela vontade de oligarcas e que devem ser enviados para a guerra por interesses puramente económicos e coloniais ?

      Pela incapacidade de compreender que o mundo não nos pertence exclusivamente a nós (Ocidente) e que não há nenhum direito de proceder às atividades disruptivas (leia-se, constantes violações de direitos humanos) a que procedemos constantemente.

      É isso o que nos compete ?

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